I – Introdução
Esse novo instituto limitador da propriedade imobiliária tem a natureza jurídica híbrida, visto que assemelhado com a usucapião social (oneroso, todavia) e, simultaneamente, com a “desapropriação indireta” (expropriação judicial), diante da exigência estabelecida de pagamento de uma “justa indenização devida ao proprietário” sucumbente em ação reivindicatória, condição indispensável à validade da sentença (eficácia jurídica) para o registro do bem em nome dos possuidores (aquisição da propriedade).
Esse estudo não objetiva analisar dogmática ou criticamente o dispositivo em questão ou, muito menos, os seus desdobramentos; o escopo deste trabalho limita-se tão somente a fazer uma reflexão a respeito da expressão “boa-fé” utilizada no § 4/ do art. 1.228 do CC, em face dos seus importantes reflexos de ordem político-social, jurídico e fatual, tudo na dependência da interpretação a ser conferida em sede doutrinária (e jurisprudencial) sobre o tema proposto.
II – A vontade da lei e do legislador
A nova figura jurídica insculpida no art. 1.228, §§ 4° e 5° do nCC é mais um dispositivo sintonizado com a função social da propriedade, conforme orientação definida originariamente na Constituição Federal (art. 5°, inc. XXIII), onde a posse assume relevo destacado, como situação fática com carga potestativa formadora de relação sócio-econômica entre um bem da vida e o sujeito, hábil a produzir efeitos no mundo jurídico. Significa dizer que na posse reside a função da propriedade, ou, em outras palavras, não há função social da propriedade sem posse (cf. Joel Dias Figueira Júnior, Novo Código Civil Comentado, art. 1196. Pp. 1093/1096, 4. Ed, Saraiva, São Paulo, 2005 – Coordenação de Ricardo Fiuza).
Sobre a intenção do legislador na criação desse instituto
híbrido (misto de usucapião social e desapropriação indireta), colhe-se do
Relatório do Deputado Ricardo Fiuza (Relator-Geral do projeto de lei do nCC)
que, por sua vez, recepcionou o relatório do Deputado Ernani Satyro, absorvendo
os argumentos sócios-jurídicos da palavra de Miguel Reale, o seguinte excerto:
“... Um dos pontos mais altos do projeto, no que se refere ao primado dos
valores do trabalho, como uma das causas fundantes do direito de propriedade.
De outro lado, não há, a nosso ver, nada
de surpreendente no fato de ser atribuído ao juiz competência para, no caso
especialíssimo previsto no art. 1.228, declarar a desapropriação dos bens
reivindicados, a fim de que seja pago ao reivindicante o justo preço do imóvel,
sem se locupletar ele à custa dos frutos do trabalho alheio. Como bem observou
o relator especial, os múltiplos casos de ‘desapropriação indireta’, que são
casos típicos de ‘desapropriação pretoriana’, resultante das decisões de nossos
tribunais, estão aí para demonstrar que o ato expropriatório não é privilégio
nem prerrogativa exclusiva do Executivo ou do
legislativo. Nada existe que se torne ilegítimo que, por lei, em
hipóteses excepcionais, o poder de desapropriar seja atribuído ao juiz, que
resolverá em função das circunstâncias verificadas no processo, em função do
bem comum . “Sobretudo depois que a lei de usucapião especial veio dar relevo
ao trabalho como elemento constitutivo da propriedade, conferindo efeitos
dominicais à ‘posse-trabalho’ (consoante terminologia do Prof. Miguel Reale,
Ainda sobre o tema, extrai-se do Relatório final, do Relator Deputado Ricardo Fiuza, apresentado à Comissão Especial de Reforma do Código Civil “...O projeto buscou, desde sua elaboração originária, o ponto de equilíbrio entre o direito de propriedade, eminentemente privado e satisfativo dos interesses individuais, e a função social da propriedade, eminentemente pública e geradora de obrigações e deveres para com a coletividade (...)
“Aparentemente, a modernidade residiria justamente no incremento das obrigações sociais ligadas à noção de propriedade. Como fez ver o Prof. Miguel Reale o ‘sentido social’ é uma das características mais marcantes do projeto, em contraste com o sentido individualista que condiciona o Código Civil ainda em vigor. (...) Em virtude do princípio da sociedade, surgiu também um novo concenso de posse, a posse-trabalho, ou posse ‘pro-labore’, em virtude da qual o prazo de usucapião de um imóvel é reduzido, conforme o caso, na hipótese dos possuidores terem estabelecido a sua moradia, ou realizado investimentos de interesse social e econômico. Por outro lado, foi revisto e atualizado o antigo conceito de posse, em consonância com os fins sociais da propriedade.”
“Em suma, tem-se que o projeto disciplina o Direito Real considerando um ‘novo conceito de propriedade, com base no princípio constitucional de que a função da propriedade é social, superando-se a compreensão romana quiritária da propriedade em função do interesse exclusivo do indivíduo, do proprietário e do possuidor.”
Ora, se por um lado ficou patente a intenção do legislador, assim confirmada pelo inteiro teor do art., 1.228, há de se questionar o alcance sócio-jurídico desse dispositivo no que concerne à nova modalidade de limitação, perda e aquisição da propriedade privada, de natureza híbrida, como dissemos no início deste estudo, na exata medida em que se aproxima tanto da usucapião (social) quanto da desapropriação (indireta ou pretoriana). É o que veremos à seguir.
III - identificação do problema posto
Como demonstramos, se o legislador buscou o equacionamento
entre o direito de propriedade e a sua
respectiva função social, isto é, de acordo com efetivo exercício do
poder fático sócio-econômico sobre
determinado imóvel (posse pro labore), havemos de questionar qual a
interpretação a ser conferida à expressão boa-fé (?), inserta na redação do §
4° do art. 1.228 do CC, quando se sabe, de antemão , que os ocupantes
(“considerável número de pessoas”) de “extensa área de terra”, têm plena
ciência que o bem por eles possuído não lhes pertence, mas sim à terceira
pessoa.
IV – A “boa-fé” em sede legislativa, doutrinária e jurisprudencial
Em arremate, o art. 1.202 do CC (idêntico ao art. 491 do CC/16):”A posse de boa-fé só perde este caráter no caso e desde o momento em que as circunstâncias façam presumir que o possuidor não ignora que possui indevidamente.”
Dentro dos contornos legais bem delineados no CC, a boa-fé significa o estado de subjetividade em que se encontra o possuidor, identificado pelo desconhecimento de qualquer vício que macule a posse (violência, clandestinidade ou precariedade) ou de obstáculo (permissão ou tolerância), impeditivos à sua aquisição. Esse desconhecimento de ofensa a direito alheio (posse ou propriedade) exclui a possibilidade de culpa grave, tomada a expressão no sentido de erro inescusável ou grosseira ignorância (cf. Joel Dias Figueira Jr., Posse e ações possessórias-fundamentos da posse, vol.I, p.251, Juruá, Curitiba, 1994).
E mais: posse justa não se confunde com a posse de boa-fé, nem a injusta com a má-fé; diz-se que a posse é justa por não estar inquinada de qualquer vício objetivo, pertinente a causa possessonis (título da posse), enquanto a posse de boa-fé está ligada à ausência de defeito subjetivo, matizado pelo desconhecimento da relação viciosa antecedente. Assim, podemos afirmar que a posse é justa por encontrar-se isenta de vícios e, de boa-fé porque sem mácula o espírito do possuidor diante do seu desconhecimento sobre circunstâncias fáticas que poderiam inquinar a sua posse. Por isso, nada obsta a existência de posse legítima em face da origem do título (causa possessionis) e, ao mesmo tempo, seja ela viciosa, em razão do conhecimento da origem violenta, clandestina ou precária (má-fé) (idem, p. 252/253).
Enquanto a injustiça da posse determina-se com base em critérios objetivos, “... a boa-fé prende-se a elementos subjetivos, pois diz com a convicção do possuidor.” (STJ, AR 34.250, Rel. Min. Eduardo Ribeiro, DJU 7/2/94).
A expressão boa-fé apontada no art. 1.228, § 4° do CC há de
ser interpretada em harmonia com o próprio Código Civil e as regras
constitucionais garantidoras do direito de propriedade, sob a luz de sua
“função social”.
Para alcançarmos esse desiderato, a interpretação há de ser
histórica e extensiva, tendo-se em conta que a lei disse menos do que desejava
o legislador, pois deveria ter incluído no dispositivo também o requisito da
posse justa. Assim, fazia-se mister a seguinte redação: “ O proprietário também
pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicado consistir em extensa área,
na posse justa, ininterrupta e de boa-fé...”
VI – Sumária Conclusão
A constitucionalidade do novo instituto jurídico inserto no
direito de propriedade, com o advento do Código Civil de 2002, como forma de
limitação, aquisição e perda da propriedade imobiliária (art. 1.228, §§ 4° e 5°
“expropriação judicial”) reside, fundamentadamente, na harmonização adequação e
equilíbrio de valores e direitos básicos definidos na Carta de 1988, de maneira
tal que se respeite a propriedade privada, com
observância da consecução de sua função social em face da posse pro
labore.