IDOSOS O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA IGUALDADE EM CONFRONTO COM ALEI QUE LHES CONFERE TRATAMENTO PROCESSUAL PRIVILEGIADO.
“O cerne do enleio reside, todavia, na circunstância de que
outras tantas pessoas naturais encontram-se em situação muito mais crítica ou
vulnerável do que os idosos e que o princípio da igualdade material ou
processual não pode ser quebrado aos sabores do vento ou dos legisladores
afoitos, salvo casos excepcionalíssimos onde, por óbvio, não se enquadra o ora
analisado.”
Inicia-se no Brasil o novo milênio com uma curiosa e incomum
novidade em sede instrumental civil representada pela Lei 10.173, publicada no
DOU de 0.1.01, com entrada em vigor programada para 60dias após a sua
publicação. Essa nova pérola legislativa altera as Disposições Finais e
Transitórias do Código de Processo Civil, mediante a inclusão de três novos
dispositivos, assim regidos:
“Art. 1.211-A. Os procedimentos judiciais em que figure como
parte ou interveniente pessoa com idade igual ou superior a sessenta e cinco
anos terão prioridade na tramitação de todos os atos e diligências em qualquer
instância.
Art. 1.211-B. O interessado na obtenção desse benefício,
juntando prova de sua idade, deverá requerê-lo à autoridade judiciária
competente para decidir o feito, que determinará ao cartório do juízo as
providências a serem cumpridas.
Art. 1.211-C. Concedida a prioridade, esta não cessará com a
morte do beneficiado, estendendo-se em favor do cônjuge supérstite, companheiro
ou companheira, com união estável, maior de sessenta e cinco anos.”
O escopo manifesto da norma é proporcionar idosos
privilégios destacado em relação aos demais jurisdicionados, concedendo-lhes
prioridade na tramitação de todos os atos e diligências em qualquer instância e
em qualquer tipo de processo que tenha aplicação direta ou subsidiária do CPC,
incluindo-se, via de conseqüência, as lides trabalhistas, previdenciárias, etc.
Se por um lado se percebe, sem maiores dificuldades, a
nobreza no espírito do legislador em tentar proporcionar aos mais velhos um
atendimento preferencial no que concerne aos atos judiciais e seus
consectários, levando em conta, para tanto o provável grau de sensibilidade e
menor expectativa de vida dos idosos em relação aos jurisdicionados mais
jovens, de outra parte, foi o mesmo legislador jocoso e duplamente ingênuo em
acreditar (ao menos aparentemente) que estaria minimizando, ou quiçá
solucionando, o problema, como parte (ativa ou passiva) em qualquer processo
cível brasileiro ou grau de jurisdição.
A norma, que para muitos pode parecer alvissareira, para nós
tem aroma e sabor de inconstitucionalidade por trazer em seu bojo o picante
ingrediente da desigualdade entre as pessoas, afrontando o mais comezinho
direito universal chancelado duplamente pela Constituição da República, no
caput do seu artigo 5° e, seguida, no inciso I do mesmo dispositivo, repetido
no Código de Processo Civil como um dos deveres do juiz em assegurar às partes
a igualdade de tratamento (art. 125, I).
Não resta a menor dúvida que a interpretação do princípio da
igualdade traz consigo a máxima de se tratar igualmente os iguais e
desigualmente os desiguais. Todavia, tal assertiva requer uma dose de
comedimento não só do intérprete, mas sobretudo do aplicador do direito, sob
pena de transformar a execução em regra ou o que seria justo em suprema
injustiça.
Pretendemos dizer com isso que é inegável a condição
diferenciada em que se encontram todas as pessoas idosas, dignas do nosso maior
respeito e admiração. Bastaria o simples fato de terem vivido uma longa
experiência de vida, na qual o tempo os tornou mais sábios e o trabalho mais
nobres.
Mas não é essa a questão. O cerne do enleio reside na
circunstância de que outras tantas pessoas naturais encontram-se em situação
muito mais crítica ou vulnerável do que os idosos, e que o princípio da
igualdade material ou processual não pode ser quebrado aos sabores do vento ou
dos legisladores afoitos, salvo casos excepcionalíssimos onde, por óbvio, não
se enquandra o ora analisado.
Ademais, nos dias de hoje a expectativa de vida do
brasileiro ultrapassa os setenta anos enquanto um homem ou uma mulher de 65
anos, por exemplo, não aparentam fisicamente esta idade. Também não agem ou
pesam como aparentavam, agiam e pensavam os nossos avós. Em outras palavras, o
ancião de hoje não se compara em nada com o passado, exceto na idade
cronológica. A verdade é que o conceito de idoso torna-se cada vez mais vago.
Diga-se de passagem que não é por menos que as idades
estabelecidas para as aposentadorias estão mudando e há muito já tremula
freneticamente a bandeira da compulsória aos 75 anos. O que se percebe é que,
paulatinamente, a idade biológica, à medida que melhoram as condições de vida
do brasileiro. E o quadro não é diverso em outros países.
Ora, com a devida vênia, o ancião, assim considerado
exclusivamente com base em sua idade cronológica, não é e nunca foi um
hipossuficiente ou incapaz merecedor de tratamento processual diferenciado.
Muito mais desiguais do que os idosos são os doentes
mentais, os menores, os pobres, os miseráveis e os deficientes físicos (v.g.
cegos, paraplégicos) entre outros e, se fôssemos manter a quixotada
legislativa, haveríamos de estender para estes grupos o mesmo benefício, mais
dia ou menos dia.
Ressalta-se ainda que num país tristemente (de)formado por
desiguais, denominado por minoria desigual, onde a Fazenda Pública goza de
benefícios e privilégios, parece pouco importar e quem sabe até esperem que
passe despercebida. Entendemos o inverso: significa mais um passo que se dá em
direção ao colapso maior através da mutilação indiscriminada dos precedentes e
dos privilégios infundados ou sem respaldo constitucional.
O segundo ingênuo erro cometido pelo legislador foi crer que
as mazelas do foro encontrariam remédio (total ou parcial) milagroso na
providência decretada em prol dos nossos velhinhos. Aqui o figurativo não é
mais Dom Quixote, e sim a Alice no Brasil das maravilhas.
Não será por meio da criação de benefícios ou privilégios
para esse ou aquele grupo, mesmo quando plausíveis as justificativas, que os
problemas envoltos na denominada crise do processo que, por sua vez,
interliga-se com a crise da jurisdição, estarão solucionados ou minimizados. A
questão é muito mais complexa e mais inçada de dificuldades do que se pode
imaginar, sobretudo porque, tristemente, constatamos que o mal é patológico,
assim como uma doença que se espalha por todas as esferas de jurisdição, sem
qualquer mecanismo de controle. Estamos falando do brutal volume de demandas
inversamente proporcional ao número de magistrados, desgraça nacional que passa
pelo Supremo Tribunal Federal e vai até o juiz monocrático de primeira
instância.
Penso, sinceramente, que podíamos até hoje estar judiciando
em sede instrumental com base nas Ordenações do Reino (qualquer uma das três, a
escolher), se tivéssemos normas compatíveis de divisão e organização judiciária
e um volume condizente de processos para cada magistrado (no máximo 500), onde
se pudesse, efetivamente, cumprir com o preceito maior do due processo flaw,
prestando a tutela jurisdicional com base no tão decantado trinômio da
celeridade, segurança e justiça da decisão.
Há muito, lamentavelmente, os processos deixaram de
representar para o julgador um conflito sociológico transformado em lide
jurídica, assim com as sentenças deixaram de ser sentidas pelos seus juizes.
Massificaram-se as lides e a justiça e, por conseguinte, comprometeram-se as
sentenças.
Não serão as reformas instrumentais isoladamente que mudarão
esse quadro desastroso em que se encontre mergulhada a jurisdição estatal, onde
se tornou comum e até banal os juizes cíveis exibirem seus mapas com três mil,
cinco mil, dez mil processos ou muito mais em tramitação numa só unidade
jurisdicional, situação agravada pela ausência de estrutura funcional e apoio
condizente com as necessidades.
Lamentavelmente, os juizes estão deixando de administrar a
justiça para administrar um acervo de feitos que mais se assemelha à massa
falida. Isso è o caos! E, nesse sentido, Há mais de meio século escreveu René
Morel que ”É inútil ter boas leis de processo se se tem uma má organização
judiciária ou juizes insuficientes, enquanto juizes de largo conhecimento
jurídico podem acomodar-se a um processo medíocre.”
À guisa de conclusão deste ensaio, podemos afirmar que a Lei
n° 10.176/01 não passa de uma criação cerebrina do legislador que muito nos
lembra o personagem desvairado de Cervantes quando, em seus delírios, lutava
contra moinhos de vento, pois os problemas que dificultam a rapidez na
prestação da tutela jurisdicional e afligem os jurisdicionados não serão
resolvidos com providências quixotescas e inconstitucionais desta ordem.
Não se concebe ainda o benefício aos idosos em sede
processual quando a própria Constituição Federal definiu as hipóteses em que
eles recebiam tratamento diferenciado (art. 14, §1°, b, art. 203, I, art. 229,
art. 230, §§ 1° e 2°). Como se não bastasse, existem outros grupos de
jurisdicionados litigantes que se apresentam muito mais carentes, incapazes ou hipossuficientes
do que as pessoas com idade igual ou superior a 65 anos. Estarão a merecer
também uma norma específica que os privilegiem?
Esperamos que num breve futuro a questão aqui exposta seja
conhecida pelo supremo Tribunal Federal que, na qualidade de guardião da Lei
Maior, saberá fazer valer a regra estabelecida como direito e garantia
fundamental. Enquanto isso, mediante a utilização do controle constitucional
difuso, haverão os juizes, por dever de ofício (art. 125, I, CPC), de garantir
a igualdade de tratamento entre as partes, independente de suas idades e, com
base no art. 5, caput e seu inc. I,
negar vigência à Lei n° 10.173, de 9.1.01 diante de sua flagrante e reprovável
inconstitucionalidade.