A Lei 6.820, de 16/09/80, tem a
seguinte redação: “Art. 1° O artigo 923 da Lei 5.869, de 11/01/79 (C.P.C.),
passa a vigorar com a seguinte redação: ‘Art. 923 – Na pendência do processo
possessório, é defeso, assim ao autor como ao réu, intentar ação de
reconhecimento do domínio’. Art. 2°. Esta Lei entrará em vigor 30 (trinta) dias
após sua publicação. Art. 3° Revogam-se as disposições em contrário”.
Até então estava assim redigido o
art. 923 do C.P.C.: “Na pendência do processo possessório é defeso assim ao
autor como ao réu intentar ação de reconhecimento do domínio. Não obsta, porém,
à manutenção ou à reintegração na posse a alegação de domínio ou de outro
direito sobre a coisa; caso em que a posse será julgada em favor daquele a quem
evidentemente pertencer o domínio.”
Por sua vez, o art. 505 do C.C.
enuncia (em sentido negativo) o contido na segunda parte do antigo art. 923 do
C.P.C.: ”Não obsta à manutenção, ou reintegração na posse, a alegação de
domínio, ou de outro direito sobre a coisa. Não se deve, entretanto, julgar a
posse em favor daquele a quem evidentemente não pertencer o domínio”.
Constata-se que a Lei 6.820/80
suprimiu a segunda parte do art. 923 do C.P.C., que nada mais é do que uma
repetição (em sentido positivo) da exceptio proprietatis, contida no art. 505
do C.C.
Surge daí a indagação: Estaria o
art. 505 do Código Civil revogado ou derrogado pela Lei 6.820/80?
Antes de responder a esta
questão, ab initio, mister se faz uma rápida distinção entre o direito material
e o direito formal. O primeiro (material) é aquele que estabelece a substância,
o conteúdo da norma de agir (norma agendi), que significa a fonte criadora e
garantidora do direito. O direito formal estabelece o rito, o procedimento para
se atingir a finalidade precípua perseguida pela parte interessada, qual seja,
fazer valer o seu direito (material) através do Poder Judiciário, que objetiva
a distribuição da justiça e, por conseguinte, a paz social.
Segundo VICENTE RÃO (in O Direito
e a Vida dos Direitos, pág. 261, vol. I, Tomo II, 1976), as leis de direito
material (substitutivas) “... são as que têm por fim definir as relações e
criar direitos...”. As leis do direito formal (adjetivas) “... regulam o modo
de realizar as relações, ou fazer valer os direitos, quando ameaçados ou
violados”.
Devemos ainda, para chegarmos a
uma conclusão precisa sobre o tema em estudo, analisar o art. 2° da Lei de
Introdução ao Código Civil (Lei 4.657/42), que trata da matéria concernente à
eficácia da lei no tempo.
Depreende-se do § 1° da LICC que
“A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja
incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei
anterior”.
É irrefutável que a Lei 6.820/80
revogou expressamente o art. 923 do C.P.C., suprimindo-lhe a segunda parte.
Entretanto que a mens legis e a mens legislatoris tenham sido apenas no sentido
de retirar do art.
Inadmissível que uma lei
processual revogue ou derrogue uma norma de cunho material, mormente quando
compatíveis entre si, pois não basta apenas o fato de serem hierarquicamente
idênticas (leis federais), é necessário ainda que sejam da mesma natureza.
Também neste diapasão é o
ensinamento de CARLOS MAXIMILIANO (in Hermenêutica e Aplicação do Direito, pág.
361, 1979): “As expressões de Direito podem ser ab-rogadas ou derrogadas
somente por outras da mesma natureza, ou de autoridade superior” (grifei).
A revogação de uma lei pode ser
expressa, quando declarado na lei nova, ou tácita, quando há incompatibilidade
entre a nova e a velha, ou quando regula inteiramente a matéria objeto da lei
anterior.
In casu, na Lei 6.820/80 não
precisaria constar o art. 3°: “Revogam-se as disposições em contrário”, pois
como bem anota CARLOS MAXIMILIANO (Op. Cit., pág.357): “Dá-se a revogação
expressa em declarando a norma especificamente quais as prescrições que
inutiliza; e não pelo simples fato de se achar no último artigo a frase
tradicional – ‘revogam-se as disposições em contrario’. Uso inútil;
superfetação, desperdício de palavras, desnecessário acréscimo! Do simples fato
de se promulgar a lei nova em contrario resulta ficar a antiga
revogada”(grifei).
Portanto, o art. 3° da Lei
6.820/80 refere-se apenas ao art. 923 do C.P.C., o que é desnecessário, pois o
art. 1° já o havia revogado, razão por que não se pode permitir também a
exegese de que o art. 505, segunda parte, estaria derrogado tacitamente.
Na hermenêutica jurídica, uma das
diretrizes a serem tomadas é que, sendo o texto legal “... entendido nos termos
latos em que foi redigido, contraria outro preceito de lei...” (CARLOS
MAXIMILIANO, Op. Cit., pág. 205), sua interpretação deve ser restritiva e nunca
extensiva.
O exegeta da lei deve ser
cauteloso para não alcançar com a interpretação a vontade da norma jurídica e
sua finalidade perseguida, norteando-se sempre pelo seu verdadeiro significado
e objetivo. Ademais, é princípio geral de direito: - posteriores leges ad
priores pertinent, nisi contrariae sint (as leis posteriores constituem
prolongamento das anteriores, se entre elas antagonismos não há).
Não se pode dizer que existia
incompatibilidade entre o art. 923 do C.P.C.(com a nova redação) e o art. 505 do
C.C., pois o primeiro é norma de natureza formal e o segundo de natureza
substantiva.
Os que pensam (sem razão) que a
nova redação dada ao art. 923 do C.P.C. entra em contradição com o art. 505 do
C.Cc, estão se esquecendo que as contradições entre os dispositivos legais não
se presumem. “É dever do aplicador comparar e procurar conciliar as disposições
várias sobre o mesmo objeto, e do conjunto, assim harmonizado, deduzir o
sentido e alcance de cada uma. Só em casos de resistirem as incompatibilidades,
vitoriosamente, a todo esforço de
aproximação, é que se opina em sentido eliminatório da regra mais antiga, ou
parte da mesma...” (CARLOS MAXIMILIANO, Op. Cit., pág.356) (grifei).
Inobstante todas as razões
anteriormente articuladas, devemos ainda considerar uma questão de suma
importância, qual seja: se nos filiarmos à corrente que admite a derrogação do
art. 505 do C.C., estaremos banindo o instituto da excaptio proprietatis, que
está arraigado no direito civil pátrio desde 1754 (Alvará de 9 de novembro).
Não se pode permitir, nesta fase,
a discussão sobre se é justa ou injusta, correta ou incorreta a alegação de
domínio nas ações possessórias, que cuida exclusivamente do ius possessionis.
É bem verdade que a tendência é
eliminar a exceptio dominii dos interditos possessórios, conforme se infere do
art. 1.249, §2°, do projeto de Código Civil (Projeto de Lei n° 634/75): “Não
obsta à manutenção ou reintegração na posse a alegação de propriedade, ou de
outro direito sobre a coisa”.
Deixo Consignado que me filio à
corrente dos que defendem a tese da retirada da exceção de domínio do âmbito
das possessórias, dentre eles CAIO MARIO, in instituições de Direito Civil,
vol. IV, pág. 61, 1970 e ORLANDO GOMES, in Direitos Reais, pág. 89, 1973.
Reconheço ser uma verdadeira intromissão à posse, mister se fazendo a
preservação da pureza dos interditos, realizando-se a defesa desta,
exclusivamente com base no poder fáctico sobre a coisa (ius possessionis) e não
sobre a titulação jurídica para o seu exercício (ius possidendi), o que, por
sua vez, não justifica a derrogação do art. 505 do C.C. através de uma lei de
cunho meramente processual e com outros objetivos. Entendendo que este tenha
sido o motivo que levou o legislador, no Projeto de Lei 634/75, a retirar a
exceptio dominii do C.C. e não as razões apresentadas por MIGUEL REALE em seu
parecer, publicado na ver. Dos Tribs., vol. 545/41 – 45, no sentido de que a
Comissão Revisora e Elaboradora do Código Civil retirou este instituto ”... por
ter reconhecido a natureza adjectiva da
segunda parte da disposição contida no citado art. 505...” (fls. 43) (grifei).
Semper, data maxima venia, não
podem prosperar tais argumentos, pois a exceptio proprietatis não é instituto
de direito adjetivo (formal), mas sim de direito material (neste diapasão
também ADROALDO FURTADO FABRÍCIO – in Comentários ao Código de Processo Civil,
Vol. VIII, Tomo III, pág. 502, 1980).
Ratificando a opinião por mim
aqui defendida, cito um excerto da obra de Theotonio Negrão (Cód. de Proc.
Civil e Legislação em Vigor, 9°. ed., pág. 242): “A lei 6.820 entrou em vigor a 17/10/80. A supressão
da parte final do art. 923 não afasta a incidência do art. 505, segunda parte,
do C.C, e da Súmula
No mesmo sentido é a recentíssima
decisão do Egrégio Tribunal Federal de Recursos (publicada no D.J.U. n° 66 – de
07/04/83, pág. 3.996 – Rel. Min. Evandro G. Leite): “...É certo que dita lei
deixou de revogar, também, a segunda parte do art. 505...”.
Por todos os motivos aqui
articulados, concluo que a Lei 6.820/80 em hipótese alguma revogou ou derrogou
o art. 505 do Código Civil.