Nos termos do dispositivo no caput do art.
54 do CDC, “contrato de adesão é aquele cujas cláusulas tenham sido aprovadas
pela autoridade competente ou estabelecidas unilateralmente pelo fornecedor de
produtos ou serviços, sem que o consumidor possa discutir ou modificar
substancialmente o seu conteúdo.”[1] Com o advento da Lei 9.307/96, nesses
tipos de contratos portadores de “cláusulas unilaterais”, o art. 4°, § 2° da
aludida norma passou a admitir a inclusão eficaz da cláusula compromissória
desde que o aderente tome a iniciativa de instituir a arbitragem ou concorde,
expressamente, com a sua instituição, mediante as cautelas de observar a forma
escrita, em documento anexo ao contrato principal ou em negrito, no próprio
contrato, com a assinatura ou visto especial para a validade dessa cláusula.
Verifica-se em primeiro plano rota de
colisão criada pelo legislador entre esse novo dispositivo e o inc. VII, do
art. 51, do CDC, que define como nulas de pleno direito, entre outras, as
cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que
determine a instituição compulsória da arbitragem, sobretudo quando se sabe que
no novo regime arbitral, a cláusula compromissória arbitral, à medida que a
instituição acarreta a exclusão da possibilidade de apreciação dos conflitos
decorrentes do contrato em questão pelo Poder Judiciário (arts. 6° e 7°).
O confronto legislativo foi criado e diante
do antagonismo aparentemente flagrante entre os dois dispositivos, há de
prevalecer a eficácia da Lei mais nova em relação à antecedente, nos termos do
§1°, art. 2°, da LICC?[2] Ou, em outros termos, diante da manifesta
incompatibilidade entre os dois dispositivos de microssistemas diversos, há de
prevalecer, em princípio, a disposição do art. 4°, §2° da Lei 9.307/96, que
admite a exclusão de apreciação de litígios pelo Estado-juiz, mas somente por
intermédio da arbitragem, quando inserida cláusula compromissória em contratos
de adesão, e desde que se atendam certos requisitos, em relação ao Código de Defesa
do Consumidor?
Em que pese o legislador ter tentado
abrandar o rigor do dispositivo e procurado conferir certas garantias ao
consumidor (via de regra parte mais fraca nas relações de consumo), quando da
opção pela jurisdição privada e conseqüente exclusão da estatal, ainda assim,
entendemos que a questão não se resolva apenas com a simplicidade das cautelas
a serem tomadas, em prol da parte aderente, definidas no referido § 2°, do art.
4°.
Ocorre que os mecanismos de segurança
conferidos na Lei de arbitragem ao consumidor, são ainda incipientes quando
confrontados com as relações de massa e consumo verificadas no mundo
contemporâneo, onde o poderio comercial ou econômico de empresas (estipulantes)
dos mais variados setores do mercado apresentam-se em total desequilíbrio
quando cotejado com a parte contrária firmadora do contrato (aderente).
Por isso, entendemos que o novo dispositivo
deva ser interpretado não isoladamente, mas de forma sistemática e teleológica
com todo o microssistema do Código de Defesa do Consumidor e sob o prisma das
garantias e direitos insculpidos na Constituição Federal, sob pena de chegarmos
à conclusão pouco sensata a antagônica ao espírito da lei e do próprio
legislador.
Se formos proceder a uma investigação
histórica da tramitação do último Projeto de Lei que antecedeu a norma em
questão (Projeto do Senado, n. 78/92), verificaremos que a intenção preliminar
do legislador em revogar o inc. VII, do art. 51 do CDC, estampada então no art.
44, inc. III, do aludido Projeto[3] não foi aprovada, segundo se infere do
atual art. 44, que não faz qualquer referência expressa ao dispositivo
Haveremos ainda de considerar a regra não
revogada e contida no art. 6° inc. VII, do CDC que garante ao consumidor,
dentre outros direitos básicos, “o acesso aos órgãos judiciários e
administrativos, com vistas à prevenção ou reparação dos danos patrimoniais e
morais individuais, coletivos ou difusos, assegurada a proteção jurídica,
administrativa e técnica aos necessitados.”
Seria ingênuo e até jocoso imaginar que a
simples inscrição em negrito de cláusula compromissória em determinado contrato
decorrente de relação de consumo, acompanhada de assinatura ou “visto especial”
do consumidor, poderia servir como instrumento único e absoluto de exclusão da
jurisdição estatal e instituição da privada, na hipótese de se vislumbrar
necessidade posterior de solução de algum conflito surgido entre as partes e
decorrente do mesmo contrato.
Entendemos que a regra insculpida no § 2°,
do art. 4° da Lei 9.307/96 não é absoluta, mas sim relativa, à medida que traz
em seu bojo apenas o norte preliminar para o delineamento e verificação das
circunstâncias particulares de cada caso concreto.
Ademais,
as cláusulas contratuais serão nas relações de consumo interpretadas de maneira
mais favorável ao consumidor (art. 47, CDC). E segundo Nelson Nery Jr. “O termo
está empregado pela lei significando todo e qualquer pacto ou estipulação
negocial entre fornecedor e consumidor, seja pela forma escrita ou verbal, pela
técnica de contrato de adesão ou contrato de comum acordo.”[4]
Analogicamente,
podemos usar os ensinamentos já sedimentados na doutrina que analisa as
relações de consumo e, em particular, os contratos de adesão e as cláusulas de
eleição de foro, transportando-os para as cláusulas compromissórias de
instituição de arbitragem no mesmo tipo contratual. Assim, sua validade e
eficácia existirão sempre, salvo se, no momento da celebração, a parte
contratante aderente não dispunha de compreensão suficiente para entender o
sentido e as conseqüências da estipulação; se se tratar de contrato de adesão
obrigatória, assim entendido o que tenha por objeto produto ou serviço
fornecido com exclusividade por determinada empresa, ou, ainda, se da prevalência
de tal estipulação, resultar ao aderente inviabilidade ou sérias dificuldades
em arcar com os custos do juízo arbital.[5]
A
título exemplificativo e comparativo, sobre o tema, v. o Código de Processo
Civil espanhol (Ley 36/88 e disposições adicionais que se aplicam às relações
de consumo o juízo arbitral). A esse respeito, dispõe o art. 5.2 da Lei de
arbitragem espanhola que “se a convenção arbitral verificou-se em contrato de
adesão, a validade deste pacto e sua interpretação se acomodarão ao previsto
pelas disposições em vigor a respeito destas modalidades de contrato.” Por sua
vez, a ZPO sobre o equilíbrio entre as partes assim dispõe: “§ 1.025. Efeito
legal de contratos arbitrais (1) O acordo, de que a decisão de uma disputa
jurídica deve acontecer por um ou mais árbitros, tem efeito legal quando as
partes têm o direito de celebrar um acordo sobre o objeto da disputa. (2) O
acordo de arbitragem é sem efeito se uma das partes aproveita a sua
superioridade econômica ou social para forçar a outra parte a uma finalização
ou aceitação de condições que, no processo, em especial quanto à indicação ou
recusa dos árbitros, lhe dá uma superioridade sobre a outra parte.”[6]
Para
concluir, diríamos que em linha de princípio, a cláusula compromissória ínsita
em contrato de adesão e decorrente da observância dos requisitos mínimos
indispensáveis assinalados no § 2/, do art. 4° da Lei da Arbitragem, é válida e
eficaz entre as partes contratantes. Todavia, a sua efetiva consecução no mundo
dos fatos e do direito, em havendo resistência do consumidor aderente às
estipulações nele contidas, há de ser analisada de maneira particular na busca
dos meandros das peculiaridades da hipótese vertente, e em sintonia com os fins
sociais dos dois microssistemas (Lei 9.307/96 e Lei 8.078/90), que devem se
completar e não excluir.[7]
[1] Sobre o tema v. Nelson Nery Jr. Código
brasileiro de defesa do consumidor, p. 382/388; Arruda Alvim, Thereza Alvim,
Eduardo Arruda Alvim e James Marins. Código do consumidor comentado, p. 263/268;
Alberto do Amaral Jr. Comentários ao código de proteção do consumidor, p.
203/207; Fernando Noronha. Rev. de Dir. do Cons., vol. 20/88. Contratos de
consumo, padronizados e de adesão.
[2] Art. 2°, § 1°, in verbis: “A lei
posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela
incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que trata a lei
anterior.”
[3] Dispunha o art. 44 do Projeto: “Ficam
revogadas todas as disposições em contrário ao estabelecido nesta Lei e, em
especial, os seguintes artigos: (...) III - 51, VII, da Lei 8.078, de
11.08.1990 (Código de Defesa do Consumidor).”
[4] CPC comentado, p. 1.682, art. 47, CDC,
n. 1, 2. Ed.
[5] Cf. análise comparativa feita por
Nelson Nery Jr., em relação às cláusulas gerais de eleição de foro nos
contratos de adesão (idem, p. 1.696, art. 54, CDC, n. 9).
[6] Não especificamente tratando-se de
contrato de adesão, mas em termos genéricos, já se manifestou a Suprema Corte
dos Estados Unidos no sentido de que a desigualdade na barganha de poderes não
é no caso, uma razão suficiente para afastar o conhecimento da lide por juízo
arbitral (decisão proferida no processo Gilmer v. Interstate/Johson Lane Corp.,
500, U.S. 20, 1991 (cf. internet, http://www.arb-forum.com/whyarbitrate.html#anchor2950871).
Idem: Somente a desigualdade do poder de
contratar e barganhar verificado entre as partes não é base para anular uma
cláusula de arbitramento por alegado desconhecimento ou “falta de consiência”.
A Lei federal não impõem obrigação aos réus para exemplificar o porquê da opção
pela arbitragem. (Decisão proferida no caso Mc Carth v. Providential Corp., Wl
387852, 1994 (cf. Internet,
http://www.arb-forum.com/whyarbitrate.html#anchor2950871).
Especificamente sobre os princípios do
contrato de adesão (Adhesio contract principles) as Cortes dos Estados Unidos
da América têm decidido no sentido de que embora a arbitragem nas relações de
consumo possa ser utilizada, o tribunal pode não agasalhar a cláusula arbitral
redigida pobremente capaz de acarretar em interpretação equivocada (processo de
Patterson v. ITT Consumer Finance Corp., 14 cal. App 4th 1679/ 18 Cal. Rptr.
2ed 563, 1993 (cf. Internet, http://www.arb-forum.com/whyarbitrate.html#anchor2950871).
E mais: A notícia dada por um Banco ao seu
cliente a respeito da mudança unilateral de termos inseridos em contrato
bancário firmado entre eles, autoriza o cliente a demandar contra o banco a
esse respeito, inclusive em juízo arbital. (caso Badie v. Bank of América, WL
660730 (Cal. Super. Aug., 18, 1994) (cf. Internet
http://www.arb-forum.com/whyarbitrate.html#anchor2950871).
Todavia, já se decidiu que a falta de
equilíbrio e reciprocidade entre os direitos e obrigações entre as partes contratantes
pode tornar inválido o acordo firmado (Sasa v. Paulos, 924 P. 2d. VT, 357, 1996
e Lopez v Plaza Finance, N. D. IL. 4/25/96, W.L. 10073, 1996) (cf. Internet
http://www.arb-forum.com/whyarbitrate.html#anchor2950871).
[7] Entendimento semelhante ao nosso é o de
Demócrito Ramos Reinaldo Filho (cf. A cláusula compromissória de arbitragem nos
contratos de adesão. Internet, http://www.teiajuridica.com/arbitral.htm).
Defendendo a tese da inaplicabilidade da
Lei 9.307/96 os contratos disciplinados pelo código de Defesa do Consumidor e
concluindo pela inconstitucionalidade do § 2°, art. 4°, da Lei da Arbitragem,
v. Carlos Alberto Etcheverry (cf. A nova lei de arbitragem e os contratos de
adesão. Algumas considerações. Internet http://www.teiajuridica.com/arbitral.htm).