Manteve sabiamente o constituinte de 1988
o controle difuso da inconstitucionalidade das leis pelos membros do Poder
Judiciário, em todos os seus graus de jurisdição, além de ampliar a
legitimidade ativa "ad causam" para a propositura da ação direta de
inconstitucionalidade (art.
Não obstante, no ano próximo passado foi
apresentada pelo Executivo Federal proposta de Emenda à Constituição, que
recebeu o n. 57, onde se pretende fazer ressurgir o malsinado instituto da
avocatória, permitindo ao Supremo Tribunal Federal, mediante provocação do
Procurador Geral ou do Advogado Geral da União "chamar" para si a
competência dos processos em transição, em qualquer instância, com o escopo de
decidir a causa que verse sobre interesse público.
Tal proposta tem desencadeado inúmeros
debates sobre o tema, sendo dominante a corrente daqueles que repudiam o retomo
da avocatória ao mundo jurídico. Entendo que a avocatória atenta flagrantemente
ao equilíbrio do estado de direito, retrai o jurisdicionado ao tão desejado
acesso aos tribunais e fere um dos direitos e garantias fundamentais, qual
seja, a proibição de admissibilidade de juízo ou tribunal de exceção (inc.
XXXVII, art. 5º. da C.F.).
Inicialmente, faz-se mister a afirmação de
que tal proposta é juridicamente impossível, pois afronta o disposto no inc. IV
do parág. 4º., do art. 60 de nossa Magna Carta que assim anota, "in
verbis": (...) "Não será objeto de deliberação a proposta de ementa
tendente a abolir: (...) IV - os direitos e garantias individuais."
(grifei). Assim, considerando que o princípio do Juiz natural é efetivamente um
direito e garantia fundamental previsto
Bastaria tal argumento verossímil e
incontestável para fulminar, preliminarmente, a esdrúxula proposta. Aliás, como
muito bem asseverou o Prof. Estevão Mallet (“in” O Estado de S. Paulo, de
30/11/91, Justiça, p. 7), "(...) somente a ruptura da ordem jurídica
poderia levar à supressão de qualquer dos direitos, ou das garantias
individuais hoje previstas na Constituição, o que obsta, como já foi dito, à
implantação da avocatória. (...)". Sugeriu ainda o festejado Professor, ao
invés da avocatória, o aperfeiçoamento e ampliação do contido na Lei 4.348/84,
sobre a suspensão da execução de liminar concedida em mandado de segurança e
aquele referido na Lei 4.725/65.
Por outro lado, não se pode esquecer que a
referida proposta surgiu em momento sócio-político de intensa procura e acesso
dos jurisdicionados ao Poder Judiciário, objetivando a garantia de seus
direitos que, por inúmeras vezes, foram desrespeitados por normas de iniciativa
do Legislativo e Executivo, cujo teor e natureza revestiam-se de total
inconstitucionalidade. O governo Collor contabilizou até o final de 1991,
portanto, em menos de dois anos de mandato, um novo, notável e desastroso
recorde, qual seja, o de figurar no pólo passivo de aproximadamente 500 mil
(quinhentos mil) ações, somente na Justiça Federal de todo o País (cf. Dados
divulgados pelo Jornal da Tarde e repetidos no Jornal do Magistrado, n. 8, p.
11).
Neste breve artigo não cabe analisar cada
uma das situações e as inesquecíveis atuações dos membros do Poder Judiciário,
a nível Estadual e Federal; todavia, não posso deixar de ressaltar a
demonstração dada em todas as oportunidades de que a mitológica Deusa da
Justiça há muito não mais tinha os olhos vendados, e que sua espada continuava
sendo empunhada com firmeza para dar a cada um o que lhe é devido.
Após longo período obscuro de
ditadura, o cidadão brasileiro voltou a ver a luz e, por intermédio dela, os
seus próprios direitos estampados precipuamente na Constituição Federal. A
avocatória, nesta fase de desenvolvimento democrático e de restabelecimento do
tão almejado estado de direito em que vivemos é muito pouco salutar, ou ainda
melhor, incompatível com os anseios da Nação. Tudo isto não passa de mais um
cenário montado pelo jogo de interesses de classes dominantes para extirpar das
mãos dos juízes monocráticos e dos tribunais de instância inferior o poder de
decisão sobre questões de manifesto interesse público.
Não deixou por menos o Prof. Ives da Silva
Martins (“in” O Estado de S, Paulo, de 25/01/92) quando asseverou que não
defendia a avocatória que “.... veio marcado pelo estigma do regime
totalitário, e é utilizada para suspender decisões jurídicas, à luz de
argumentos políticos, como os de grave lesão à ordem pública, econômica ou
financeira (...)", terminando por sugerir uma nova emenda ao texto
constitucional, incluindo no art.
O Supremo Tribunal Federal que atualmente
já tem a competência e equipara-se a verdadeira Corte Constitucional, não pode
correr o risco de se envolver em questões de interesses de facções políticas,
sob pena de perder sua credibilidade. O conceito de interesse público,
segurança, finanças públicas, perigo de grave lesão à ordem pública ou à saúde,
etc. são por demais amplos e, não raras as vezes, nossa Suprema Corte estaria
sendo forçada a manifestar-se sobre todas estas matérias; assim, o que se
imagina como medida excepcional, sem sombra de dúvida se tomará regra.
Os defensores da tese contrária alegam, a
título comparativo, que no passado, durante 11 anos de vigência deste
instrumento (incluída
Por outro lado, não podemos nos
esquecer que já existe interferência política na cúpula do Judiciário, como
muito bem lembrou o ex-presidente do agrégio Tribunal de Justiça de Sta.
Catarina, Des. Nelson Konrad ("in" Diário Catarinense, de 28/791),
quando afirmou que a escolha dos membros do S.T.F. e do S.T.J., dentre outros,
é da competência do Presidente da República, dependendo da aprovação do Senado,
contrariando assim o art. 2º. da Constituição Federal. que estabelece a
independência entre os dois Poderes, "(...) de modo que será sempre uma
escolha política (...)."
A avocatória para a Corte Constitucional é
característica de constituições rígidas, como ocorre, por exemplo, na Itália,
onde o dito Órgão tem o controle exclusivo da constitucionalidade das leis,
limitando os poderes do juiz ordinário ou especial, que deve suspender o
processo e remeter "ex officio" a decisão sobre a questão de
constitucionalidade à mencionada Corte (art. 134, 136 e 138 da Constituzione
della República Italiana). Contudo, enquanto a tendência moderna segue a linha
do controle difuso, como se vislumbra nos Estados Unidos da América, dentre
outros países, alguns políticos brasileiros, mais uma vez, estão tentando
reverter o nosso quadro para atingir o retrocesso jurídico em benefício de uma
classe dominante e minoritária, em prejuízo de outra, majoritária, sofrida e
enganada.
Se o chamamento dos autos, de ofício, pelo
próprio Supremo Tribunal Federal já seria uma temeridade, o que dizer então da
proposta apresentada, que confere ao Procurador Geral e ao Advogado Geral da
União tal prerrogativa?
Anoto ainda que recente pesquisa realizada
durante o XII Congresso Brasileiro de Magistrados
Também, vale lembrar "en
passent", que a Ordem dos Advogados do Brasil, em sua grande maioria, é
contrária ao retomo da avocatória, sobretudo pela eliminação da possibilidade
recursal às diversas instâncias, ferindo o princípio processual constitucional
do duplo grau de jurisdição (art. 5º., inc. LV, C.F.).
Finalmente, ressalto que
absolutamente não é de avocatória que necessitamos, mas de um Poder Judiciário
mais independente em termos financeiros para que possa revolucionar sua
estrutura funcional interna, reaparelhando-se e ingressando na informatização,
em todos os seus níveis; preenchimento e aumento do quadro de Juízes e Membros
do Ministério Público e de normas processuais mais ágeis e adequadas à nossa
conjuntura hodierna, a fim de que a prestação da tutela jurisdicional
efetive-se com rapidez.
No momento em que o Judiciário influenciar indiretamente no espírito de seus jurisdicionados à renúncia do direito, resultando na dificuldade de acesso aos tribunais por múltiplos fatores de ordem interna e externa, estará, antes de mais nada, renunciando a si mesmo, à estabilização do Estado de Direito e à paz social.